Previsões vs. Realidade: o desafio de antecipar o futuro
As taxas de juro vão descer? Quando vai acabar a guerra na Ucrânia? O governo consegue aguentar a legislatura até ao fim? Procuramos nas previsões as respostas a estas e muitas outras perguntas sobre acontecimentos que decorrem num mundo cada vez mais acelerado e incerto. Se é verdade que não faltam entidades credíveis que antecipam tendências e elaboram cenários — basta pensar em institutos públicos, instituições financeiras, think tanks e as mais reputadas empresas de estudos de mercado —, nem por isso deixamos de manter uma relação ambivalente com as previsões. Amadas ou odiadas, já não conseguimos passar sem elas.

Para Marina Petrucci, a Country Manager da Ipsos Apeme, as previsões e as tendências são muito mais do que uma mera lista de números vistosos para marcar a agenda pública. Os resultados deste tipo de estudos são a antecâmara de algo maior que uma marca deve almejar: adaptação e inovação. Numa entrevista onde coube uma mão-cheia de questões provocatórias, a líder da multinacional francesa em Estudos de Mercado em território nacional destaca a importância de fomentar uma cultura de conhecimento que enquadre os resultados ao longo do tempo e privilegie o entendimento humano numa altura em que a Inteligência Artificial ganha cada vez mais protagonismo.
Qual foi o maior erro de previsão que a sua empresa de estudos já fez? E o que aprenderam com isso?
As empresas de estudos e não só cometem erros nas previsões. Há uns dias, ouvi um concorrente nosso dizer na televisão, com muita graça, que ninguém aponta o dedo à meteorologia quando falha as previsões do tempo. E nós sabemos que isso acontece. No essencial, as previsões falham por que são um exercício teórico, muitas vezes laboratorial, de tentar criar cenários que, como nós sabemos, em tempos de policrise, são muito incertos. A incerteza deve-se a fatores imprevisíveis, como crises económicas, desastres naturais ou pandemias. Por isso, costumamos dizer que a única coisa segura e previsível nos dias de hoje é a ausência de previsibilidade.
As previsões saem algumas vezes ao lado, porque o contexto muda. Quando nos predispomos a fazer um exercício deste tipo, partimos de um contexto específico que muitas vezes não está de todo materializado. Por contexto refiro-me não só às variáveis macro ligadas a aspetos económicos, tecnológicos, sociais ou políticos. Penso também em mudanças internas nas organizações, que obrigam a redefinição de estratégias e muitas vezes a materialização de conceitos de forma diferente de como foram idealizados ou testados. Essas mudanças podem ocorrer de forma inesperada e não serem capturadas pelos modelos de previsão. Ora, pequenas imprecisões nos modelos podem levar a grandes erros nas previsões.
Portanto, diria que não só nós, como todas as empresas de estudos de mercado, já terão trabalhado cenários de um futuro próximo, cujas condições se alteraram. Obviamente, cabe-nos a nós tentar antecipar ao máximo essas alterações, assim como garantir que os dados que recolhemos e tratamos são suficientes e adequados. Convém também ter presente que as previsões se baseiam em suposições sobre o comportamento do consumidor, concorrência, ou outras variáveis que podem não se materializar.
Em suma, uma previsão é sempre o resultado de um modelo da realidade. E todos os modelos são por natureza imperfeitos, uma vez que são uma simplificação do que se passa em nosso redor. Com base na nossa experiência e nas boas práticas metodológicas, escolhemos os elementos-chave que captem ou antecipem uma realidade o melhor possível.
Como referiu, o mundo está cada vez mais imprevisível. De que forma uma empresa de Estudos de Mercado consegue garantir que os resultados das pesquisas que fazem não se tornam obsoletos de um dia para o outro?
Em bom rigor, os estudos que a nossa indústria produz ficam irremediavelmente datados passado pouco tempo devido às mudanças de contexto. Por essa razão, é tão importante não pensar apenas numa lógica de estudos e projetos, mas também fomentar uma cultura de conhecimento e de acompanhamento do comportamento do consumidor. Por outras palavras, alargar sempre que possível a análise para assegurar que os clientes têm acesso uma perspetiva de continuidade.
Seja um produto ou um tema social, aquilo que era verdade há uma década ou duas atrás tem uma forte probabilidade de já não o ser agora. Portanto, a única maneira de evitar a perda de relevância dos estudos é continuar, sempre que possível, a aprofundar um tema e comparar como as suas várias dimensões evoluíram ao longo do tempo. Do ponto de vista empresarial, esta abordagem de maior fôlego obriga-nos a integrar informação e, assim, atualizar o nosso conhecimento. É por esta razão que as metodologias Ipsos integram cada vez mais não só a perspetiva de monitorização, mas também a de cruzamento de dados: internos e externos, curadoria de conhecimentos ou integração de IA, por exemplo.
É verdade que persistem os temas estruturantes de qualquer sociedade. No entanto, até mesmo esses grandes temas — olhemos para a política, a saúde ou a educação — mudaram substancialmente. A saúde é um bom exemplo. Hoje, discute-se muito mais a relação entre saúde e tecnologia, as implicações do aumento da longevidade e como se caracterizam as atitudes mais holísticas da saúde e bem-estar. A saúde será sempre um tema importante para as pessoas, o que muda são dimensões que passam a ser valorizadas. O nosso papel é perceber quando despontam e não abdicar de uma visão de conjunto.
Os portugueses são previsíveis?
Não podemos dizer que os portugueses são mais previsíveis do que os outros povos. Há, obviamente, traços mais estáveis que nos ajudam a identificar atitudes, comportamentos e valores, que acabam por se refletir nos hábitos de consumo. Sabemos por experiência que os portugueses tendem a privilegiar a estabilidade, a segurança e a família. Estas características estão em linha, por exemplo, com o modelo de dimensões culturais de Geert Hofstede. De acordo com o modelo deste autor, os portugueses tendem a respeitar a hierarquia, focam-se na qualidade de vida e nas relações interpessoais e mostram elevada aversão à incerteza. Essas características refletem uma cultura que valoriza a estabilidade, a coesão social e o bem-estar coletivo.
Entender estas singularidades nacionais permite-nos antecipar alguns comportamentos e explicar reações a produtos ou serviços. Um caso típico de aplicação deste conhecimento é a avaliação de campanhas de comunicação. É por vezes possível perceber que tipo de mensagens, promessas e claims vão ser mais bem aceites pelo consumidor. Em síntese, não arriscaria dizer que os consumidores nacionais são totalmente previsíveis, mas há, sem dúvida, em determinadas áreas de negócio e para quem trabalha em pesquisa há muitos anos, padrões que são possíveis de reconhecer e antecipar.
Se todas as empresas procuram e consomem as mesmas tendências, onde fica o espaço para a inovação?
Esse é o ponto fundamental. Não basta desenvolver um estudo de tendências com gráficos bonitos e ideias potencialmente fora da caixa. Se o cliente se ficar apenas pelo deck com os resultados, o estudo fica reduzido a informação de contexto, que como já vimos tem um prazo de validade. Assim, diria que um estudo de tendências é um dos trampolins disponíveis para uma marca ser capaz de inovar na sua indústria. O nosso apoio é, aliás, fundamental nesse salto.
A Ipsos, que trabalha tendências há mais de 12 anos, produz todos os anos um relatório global com base em entrevistas conduzidas em 50 mercados que identifica dimensões macro e traça cenários mundiais. Estes dados globais merecem, obviamente, uma leitura e análise locais. Esse esforço de adaptação das tendências à nossa realidade permite que os nossos clientes fiquem mais bem munidos para entender quais são os pontos relevantes a aplicar nos seus negócios.
A propósito desse esforço, estou-me a lembrar, por exemplo, do nosso Future Focus Lab, um espaço de pensamento estratégico e de inovação com o cliente. A primeira fase do laboratório é a identificação de tendências relevantes para o negócio e, de preferência, com dados portugueses. Depois, há um trabalho de reflexão com os colaboradores para dar lugar a propostas de valor baseadas em dados, sejam quantitativos ou qualitativos. Partimos então do geral para construir declinações na oferta, sejam produtos, serviços ou comunicação. Esta é, sem dúvida, uma forma de extrair ao máximo o sumo das tendências com o intuito de inovar.
Ainda a este respeito, posso partilhar que a semana passada fizemos uma apresentação num evento da Puratos, uma marca especializada em produtos e soluções inovadoras para os setores da panificação, pastelaria e chocolataria. A apresentação teve por base as tendências globais nos setores da padaria e da pastelaria. Além dos principais números por área de atuação da marca, o evento materializou cada uma das tendências num marketplace onde os convidados podiam experimentar os novos produtos.
Hora de fazer uma previsão. Em plena era da Inteligência Artificial, acredita que as previsões para o próximo ano serão feitas inteiramente por uma máquina?
É verdade que a Inteligência Artificial (IA) está a transformar a maneira como recolhemos e analisamos dados, encurtando o tempo necessário para desvendar insights importantes. No entanto, afirmar que as previsões serão feitas inteiramente por IA no futuro próximo é prematuro. A IA é uma ferramenta poderosa que complementa, mas não substitui, a experiência e o juízo humano. Porquê? A IA é excelente na identificação de padrões em grandes volumes de dados, mas ainda apresenta limitações na interpretação contextual e na compreensão das nuances culturais e emocionais que influenciam os consumidores. Ademais, é preciso assegurar a qualidade dos dados, como nos recorda a máxima garbage in, garbage out. Por outras palavras, as previsões feitas por IA são tão boas quanto os dados que alimentam os algoritmos. Como é conhecido para garantir a qualidade dos dados e a gestão de dados incompletos ou enviesados ainda é necessária intervenção humana. Por fim, é importante sublinhar que não são apenas os dados que pesam na hora de tomar decisões estratégicas. Há, especialmente em situações de elevada complexidade, considerações éticas a ter em conta, bem como a intuição e a experiência — elementos intrinsecamente humanos.
Portanto, embora se preveja um desempenho e um papel cada vez mais importante da IA na nossa indústria, as próximas tendências serão provavelmente fruto de uma abordagem híbrida. Este modelo complementar combinará a capacidade analítica avançada da IA com a perspicácia, experiência e bom senso dos especialistas humanos. Esta sinergia permitirá criar previsões mais robustas e acionáveis, maximizando o valor que oferecemos aos nossos clientes.