Pontos de vista: Da vacinação COVID-19 na Europa
Iniciamos este ano com uma nova rubrica: "Pontos de Vista" dos nossos especialistas. Neste mês de Janeiro, Ricardo Viegas, Senior Researcher na Ipsos Apeme, procura compreender em que medida a vacinação completa pode explicar, em conjunto com outros indicadores sociológicos e económicos, a redução da mortalidade pela doença nos diferentes países europeus.
O impacto social e económico da COVID-19 é inegável e muito significativo, seja diretamente, em vidas humanas perdidas ou afetadas na sua saúde física e mental, seja na atividade económica de médio e longo prazo, indissociável, naturalmente, do choque na saúde dos cidadãos, e.g., [1],[2],[3].
Até recentemente, vários trabalhos sugeriam que, para além do (a) fator etário que se traduz num maior peso de doença grave e óbito em populações mais envelhecidas, muitas vezes institucionalizadas em locais de cuidado a idosos, (b) da densidade populacional, ou mesmo (c) severidade dos confinamentos (usados pela maioria dos países ocidentais no sentido de limitar a propagação do vírus Sars-CoV-2), um dos fatores com maior impacto na doença grave e óbito pela doença seria (d) a Desigualdade Económica, i.e., assimetria na distribuição de rendimentos de um país [4],[5].
Com efeito, o impacto da COVID-19 parece seguir um fenómeno bem documentado na literatura económica, no âmbito do qual as diferenças na distribuição de rendimento causam um impacto negativo em indicadores de desenvolvimento humano e social, apesar da riqueza acumulada ou desenvolvimento tecnológico (ver, e.g., [6],[7],[8]).
Donde, os dados até ao momento sugeriam que, tratando-se de um fenómeno natural, o seu impacto, sendo “democrático”, no sentido em que, clinicamente, qualquer indivíduo de uma Comunidade poderia ser infetado, as suas consequências seriam profundamente desiguais, replicando a desigualdade económica pré-existente em cada local. Estas implicações podem ser observadas pelo padrão de ação da doença, particularmente grave junto dos mais idosos ou portadores de várias patologias associadas (comorbilidades ou doenças pré-existentes), ou pelas limitações no acesso aos cuidados de saúde decorrentes de um contexto socioeconómico mais frágil e empobrecido, pelo que os esforços no sentido de procurar meios de combate à propagação e severidade da condição clínica resultantes da doença ganham um peso ainda mais relevante.
Assim, o advento das vacinas contra a COVID-19, as quais apresentam alto grau de eficácia na redução da severidade da infeção por Sars-CoV-2, vide, e.g., [9], [10] trouxe consigo uma renovada esperança no combate à doença, a nível mundial, não sem desafios, os quais resultam não apenas de questões de acesso a informação clara e de qualidade, mas que decorrem, também, do prolongar do contexto pandémico e da incerteza muitas vezes associada, e.g., [11].
Sendo a Ipsos APEME a representação Portuguesa da Ipsos, assumimos, naturalmente, a missão da nossa casa-mãe de fornecer a todos os Stakeholders da Comunidade, sejam Governos, Empresas ou Cidadãos, informação que respeita os mais elevados padrões de qualidade e clareza, permitindo a todos os agentes contribuir para uma leitura e uma tomada de decisão informada. A par do respeito pelo Estado de Direito, a Transparência, Educação, Direito à Diferença e Sentido de Comunidade são aspetos essenciais para o exercício da Cidadania Democrática.
À luz desta necessidade de contribuir para o esclarecimento de um tema atual de enorme relevância social, realizámos um exercício tendo por base dados partilhados pela Comissão Europeia em novembro de 2021 e que podem ser encontrados, por exemplo, aqui [12]. O nosso objetivo central foi compreender em que medida a vacinação completa poderia explicar, em conjunto com outros indicadores sociológicos e económicos, a redução da mortalidade pela doença nos diferentes países europeus. Donde, reunimos informação referente a um conjunto de outros indicadores citados na literatura recente como podendo estar relacionados com o número de óbitos em cada país, a saber: Nº de Habitantes em cada um dos 27 Estados-Membros em análise, Densidade Populacional (habitantes por Km2; para População e densidade, conferir referências 14- 40], e Coeficiente de Gini1, recalculado em 0-100 [13],[41]. O facto de os mesmos serem indicadores estáveis e bem estabelecidos em séries temporais longas permite que o seu poder explicativo se mantenha ao longo de períodos mais extensos, o que lhes confere importância adicional no estudo dos fenómenos socioeconómicos.
Partindo de uma análise inicial de correlações de Pearson, que nos diz, de um modo simples, em que medida cada uma das variáveis está associada a um aumento ou diminuição do nº de mortes a 14 dias nos 27 países em análise, obtivemos os seguintes resultados:
Tabela 1: Correlações de Pearson entre indicadores em análise;
A azul e com ** correlação estatisticamente significativa a p<0,01, bicaudal; 1 Indicador sintético de desigualdade na distribuição do rendimento que assume valores entre 0 (quando todos os indivíduos têm igual rendimento) e 100 (quando todo o rendimento se concentra num único indivíduo). O coeficiente pode também variar entre 0 e 1. A desigualdade / assimetria na distribuição dos rendimentos é tanto mais forte quanto maior for o valor assumido pelo coeficiente, ou seja, quanto mais próximo de 0, mais igualitário é um país, sendo que, mais próximo de 100 sinaliza uma completa desigualdade na distribuição dos rendimentos.
Os resultados são evidentes: embora a relação esperada entre a desigualdade económica, medida, neste caso pelo Coeficiente de Gini recalculado, seja moderada a forte [42, [43], a associação negativa entre a percentagem de vacinação completa na População e a morte por um milhão a 14 dias é lapidar. A vacinação, por si só, explica mais de duas vezes mais (2,23 para sermos exatos) a variação no nº de mortes do que a desigualdade! Sendo negativa, significa que à medida que cresce a % de cidadãos com vacinação completa numa população, diminui significativamente o nº de mortes, mesmo considerando a desigualdade económica do país em questão. Sendo certo que correlação nem sempre se traduz em causalidade, o facto das restantes variáveis tidas como possíveis explicadoras do fenómeno terem associações baixas são indicadores-chave para o peso que a vacinação completa tem na prevenção da morte por COVID-19.
Indo um pouco mais longe, de modo tentar prever o peso de cada uma destas variáveis na explicação final do nº de mortes pela doença, fizemos uma extra mile, correndo um modelo de Regressão Linear Múltipla tendo como variáveis explicativas as 4 variáveis-chave identificadas: % de vacinação completa, Nº de Habitantes, Densidade Populacional e Desigualdade (medida pelo Coeficiente de Gini). O modelo usado (Stepwise) tem uma vantagem face a outros modos de cálculo, uma vez que apenas considera variáveis com maior utilidade de previsão. No caso concreto, quais os indicadores que mais contribuem para prever o nº de mortes por doença nos países em análise [43].
Tabela 2: Sumário do Modelo de Regressão Linear Múltipla do exercício
2Parâmetro necessário, dada a diferença de escalas entre os indicadores no estudo.
Os resultados são, uma vez mais, de uma enorme clareza. O modelo (com um excelente ajuste aos dados – R2 ajustado de 0,76! – e cumprindo, no geral, os pressupostos teóricos da técnica; se tiverem curiosidade, podem consultar [43]) apenas considerou como variáveis mais úteis na explicação a % de vacinação completa por país, secundada, à distância, em importância, pela desigualdade económica. Num exercício rápido de aproximação, se reconduzimos os coeficientes padronizados Beta, a azul, a uma escala de 0-100%, a % vacinação completa valeria 68% da importância relativa do modelo, contra 32% da desigualdade económica.
Em suma, os dados disponíveis mostram de um modo muito claro a importância da vacinação contra a COVID-19 como fator de proteção da Comunidade, mesmo considerando países desenvolvidos com perfis de população, concentração de habitantes, pirâmides etárias e distribuições de rendimento muitos dispares e, aparentemente, independentemente das restrições impostas à população, as quais variam de acordo com o país em análise [44]. Com efeito, e embora, dada a emergência da situação, seja necessário deitar mãos a um vasto conjunto de abordagens de âmbito social, económico e clínico, tais como tratamentos para as formas moderadas e graves da doença [45] ou o imperativo Ético de alargar e acelerar a vacinação nos países em vias de desenvolvimento [46], [47] uma vez que esta lacuna aumenta o risco de novas mutações como a recente Ómicron, atualmente os Cidadãos Europeus e restantes Stakeholders podem manter-se cautelosamente tranquilos, sem baixar a guarda, mas sem hiper-reactividade aos acontecimentos diários. A título de ilustração, já existe, na comunidade científica, uma forte sugestão de que este vírus se tornará corrente e endémico, ou seja, fará parte da miríade de vírus respiratórios que circulam no Planeta diariamente, como a Influenza [48].
Gostaríamos de terminar este artigo com uma forte nota de esperança na Comunidade, agora que se inicia um novo ciclo, através da entrada num novo Ano Civil. A espécie Humana tem sido a espécie animal mais bem-sucedida a adaptar-se a um mundo em que a única Constante é a Mudança, mesmo quando esta acarreta grandes desafios individuais e coletivos. Na história recente, no início da Segunda Guerra Mundial, foi criada, pelo Governo britânico, uma frase muito feliz, que, apesar de, na altura em que foi redigida, ter tido uma notoriedade inferior à que veio a adquirir aquando da sua redescoberta, no início dos anos 2000 [49] traduz este espírito de combatividade, superação e resistência comum à adversidade. Humildemente tomamos a liberdade de voltar a usá-la: Keep Calm and Carry On!